Opinião, Contos & Crônicas

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O diário de uma borboleta
por: Grazy Nazario
25/05/2016

“Eu sempre me perguntei por que eu era desse jeito. Claro que estas duvidas só surgiram em  minha mente quando eu percebi  os olhares “diferentes”. Eu não sei se conseguirei me fazer entender um dia para alguém, explicar este olhar é muito difícil. É algo como quando estamos com a roupa manchada ou suja e alguém critica aquilo com reprovação, mas no meu caso, é como se eu fosse a mancha, ou a própria sujeira.  E tudo o que eu sempre quis, foi ser vista, sem ser a mancha ou a roupa, eu queria que enxergassem o ser humano, e só”.

 

Naquela manhã Lucia entrou no quarto da filha e se viu desesperada, as coisas estavam reviradas, as roupas bagunçadas e tudo espalhado pelo chão. A mãe então reparou que o diário inseparável da garota estava no meio da desordem, jogado, sem nenhuma vigilância que normalmente lhe cabia. Sentiu curiosidade, aflição, desespero e alivio. Era provável que aquele diário desse uma pista de onde a filha poderia estar, e o que teria acontecido com ela.

 

O sumiço de Eduarda intrigava a sua mãe. O pai já havia dito que não queria saber daquele “ser”, o irmão, nem mesmo perguntara pela jovem, e a outra irmã era criança demais para opinar. Quanto ao restante da família, todos falavam de Eduarda, ela era o assunto, aquilo que todos se julgavam no direito de mencionar e explicar os caminhos das causas e as devidas providências para a cura. A mãe sofria, lamentava por não ter a voz tão alta para que todos pudessem ouvir as suas argumentações. Eduarda não era assim tão ruim.

 

Lucia passou algumas folhas, e leu: “Ele puxou o meu cabelo com muita força, eu senti o meu corpo sendo jogado, as minhas costas bateu na madeira da cama, eu me senti uma fraca, um lixo, um trapo. Eu não tive forças para reagir. Não conseguia entender por que ele estava sendo tão mal, ninguém faz isso com um ser humano, ultrapassa as barreiras da crueldade...”. “Eu acho que nunca serei amada, se nem ele sente amor por mim, quem sentirá?” Os olhos de Lucia encheram de lagrimas, aquelas linhas lhe pareciam mais que sofrimento ou dor, lhe assemelhava a suplica.

 

Nos moldes “normais”, Eduarda seria uma aberração. Foi assim que ela se sentiu a primeira vez que decidiu que assumiria a sua forma de viver. Mesmo com todas as vozes de fora a contradizendo, ela admitiu para si mesma que via o mundo de forma diferente, e não do jeito que falavam que devia ser. Em tudo se intrometiam, assim como acontece como todas as pessoas, mas com ela parecia ser imensamente pior. Até que chegou um momento (ou vários) em que ela duvidou do que realmente gostava em relação ao mundo e as pessoas. Simplesmente não lhe davam tempo para sentir a própria vida, descobrir as próprias vontades.

 

É como se o mundo, e no mundo já existissem situações e condições pré-estabelecidas, como se nada pudéssemos fazer por nós ou pelo planeta, pois tudo já esta pronto. E quem determina aquilo que queremos? É esta pergunta que eu me faço, e é esta questão que intrigava Eduarda. Quem disse que eu quero usar esta ou aquela roupa? E por que usar roupas? Por que as crianças brincam com determinados brinquedos? Como saber se isto é o que ela quer ou gosta? Em que são baseados estes interesses e quem determina isso realmente?

 

Antes de praticamente enlouquecer, Eduarda decidiu que seria forte, precisava assumir para ela mesma o que queria ser afinal, e como queria que a sua vida fosse, já que apenas o silencio da alma, ou a morte lhe pareciam alternativas. Não poderia perder aquela viagem da vida, se assim o mundo a fez sentir ela não deveria estar tão errada como lhe dizia o pai. Após meses de devaneios, Eduarda decidiu que seria do jeito que se sentia bem, respirou tão profundamente que pensou ser possível explodir os pulmões de tanto ar, sentiu como se um monte de entulhos fosse retirado de suas costas, deu um largo sorriso de alivio. O mundo lhe pareceu que seria um lugar agradável. Eu fiquei feliz por Eduarda, sempre fora intensa, viveu aquele momento como se fosse o único de tanta alegria, E foi mesmo.

 

Eduarda sabia que não seria fácil a sua decisão, mas jamais imaginaria o tamanho do problema que enfrentaria. Talvez tenha sido ela mesma a maior causadora de sua imensa frustração, afinal quando queremos muito algo, a tendência é que projetamos isso em nós, como se as coisas boas fossem acontecer simplesmente pela força magica do pensamento. Como se outro alguém pudesse ser influenciado por nossos desejos, e as nossas vontades desde as mais singelas à complexas fossem possíveis. Talvez Eduarda tenha se perdido entre contos de fadas e filmes de ficção juvenil, ou simplesmente tenha acreditado no amor, o fato é que nem nos seus piores pesadelos imaginaria tanta rejeição e violação de sua intimidade. Era pior que a morte, era viver em agonia, sem paz e sem riso.

 

Eduarda sempre foi uma criança extrovertida, parecia estar o tempo todo em um palco de teatro, contracenando, vivendo histórias. Ainda pequena era uma menina alegre, e tranquila, mas isto ainda muito pequena. Ainda antes de completar nove anos as suas turbulências se fizeram transparecer, e o seu mundo começou a mudar. Eduarda poderia ter sido uma pessoa comum, uma garota alegre, estudiosa e de boa índole, e esta é a sua melhor descrição. A sua história tinha tudo para ser comum, sem nada além de estudos, relacionamentos e carreira, se não fosse por um único detalhe...  Eduarda nasceu Rogério, mas escolheu viver Eduarda.

 

Lucia continuou a ler as folhas do diário minuciosamente... “Por que as pessoas querem escolher as coisas que vamos viver?  Hoje o meu irmão me olhou novamente com aquele olhar, foi tão ruim que eu chorei até vomitar. Ele não me olhava assim antes, mas depois das duas ultimas brigas com o meu pai, parece que ele mudou. Tive vontade de bater nele, mas também quis dizer que eu sou a mesma pessoa de sempre, e que ele pode falar comigo... Eu acho que o meu pai é ruim por que os vizinhos falam muito de todo mundo, e meus avós e meus tios... Como eu serei feliz, se tudo o que eu fizer for para agradar outras pessoas, que não me conhecem, não se importam e não fazem a menor diferença em minha vida? 

 

 Lucia se assustou. Notou que havia um bilhete endereçado a ela, seu coração disparou e ela abriu:

- Mãe, eu lhe agradeço por toda compreensão de até este momento, mas a vida exigiu uma postura de minha parte. Estou indo embora. Não quero mais viver isso, o mundo como é visto aqui não tem espaço para quem eu sou.

Eu tentei durante muito tempo ser digna do amor do meu pai, mas hoje percebi que isto é impossível. Não vou mais insistir, nem esperar o teu amor, e também não irei atrapalhar a vida dele ou da família que fica.

Deixo aqui o meu adeus, e a certeza do quanto lhe sou grata.

                                                                                                           Eduarda.

 

Depois daquele bilhete Lucia entrou em parafuso, teve coragem de dizer todas as verdades que julgava necessário para todos da família, esperneou até a sua voz e seu corpo cansar. Mas já era tarde, não mais encontrou Eduarda, ela se foi.

 

Procurou pela filha em todos os lugares possíveis, hospitais, necrotério e delegacias, fez uma denuncia de suicídio, e até anunciou em alguns jornais locais. O pai pouco se comoveu, mas foi obrigado a ajudar a esposa, ou a conta ficaria ainda mais cara para ele. Lucia deixou claro o amor real pela filha, disse ao marido que não importava o que Eduarda desejava fazer da própria vida, ela a amava apenas por existir, e nada em troca a mãe precisava.

 

Meses depois nenhuma noticia da filha, Lucia se lamentava, tinha certeza de que a filha havia se suicidado, acabado com a própria vida por não se sentir amada, por não compreenderem algo tão simples. Culpava-se por não ter se despedido, e não ter dito a chance de impedir aquela crueldade com a própria vida, nem mesmo um sepultamento digno conseguiria ofertar para Eduarda.

 

Lucia olhava a janela, então viu uma borboleta azul, lembrou-se de Eduarda e de sua formosura natural. Junto com a borboleta chegou o carteiro e um envelope para Lucia.

 

 

Mãe

 

Todo este tempo de sofrimento foi importante para mudanças. Muitas vezes para viver o que somos, precisamos abrir mão daquilo que já fomos. Crio aqui uma nova família, uma escolha e novas alianças, se será o melhor, apenas o tempo irá dizer, e o caminho escolhido me levará.

Te amarei sempre, reze por mim.

 

Eduarda.

 

Texto: Grazy Nazario.

 



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